


Grupo de Trabalho da ONU
Sobre Afrodescendentes
Divulga comunicado final sobre visita ao Brasil


13 de Dezembro de 2013 · Comunicados
Brasília, 13 de dezembro de 2013. O Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Afrodescendentes agradece ao governo do Brasil pelo convite para visitar o país para estudar a situação dos afro-brasileiros e pela sua excelente cooperação na condução de nossa visita. Queremos salientar que as opiniões expressas nesta declaração são de natureza preliminar e não são, portanto, abrangentes. Nossas conclusões e recomendações serão desenvolvidas plenamente quando nos reportarmos sobre a visita ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.
No decorrer de nossa visita tivemos a oportunidade de nos reunir com inúmeros funcionários do governo federal, estadual e municipal, das Nações Unidas e interagir com a sociedade civil, incluindo comunidades negras em Brasília, Pernambuco, Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro. Nossa visita permitiu uma oportunidade única para compreender a situação dos direitos humanos dos afro-brasileiros. Os resultados preliminares de nossas amplas consultas e reuniões estão apresentados abaixo.
Durante os últimos 10 anos, o Brasil mostrou vontade política para superar o racismo e abordar as questões de igualdade racial enfrentadas pelos afro-brasileiros. O Brasil desenvolveu um conjunto de iniciativas consagradas pela Constituição, legislação infraconstitucional e políticas públicas de promoção da igualdade racial, cuja face mais visível são as ações afirmativas. A adoção da lei 10.639, em 2003, sobre o ensino da história e da cultura da África e dos afro-brasileiros nas escolas, é um passo importante no reconhecimento da contribuição dos negros para a construção da sociedade brasileira. O decreto n º. 4887, de 2003, e os decretos posteriores, reconhecem e definem os títulos de propriedade das comunidades quilombolas, têm por objetivo enfrentar a desigualdade socioeconômica e o direito à terra de um dos grupos mais marginalizados do país.
A adoção do Estatuto da Igualdade Racial em 2010 é um passo crucial na promoção da igualdade para os afro-brasileiros. A decisão da Suprema Corte em 2012 sobre a constitucionalidade das cotas raciais para acesso ao ensino superior, e as atuais discussões no Congresso sobre as cotas para cargos públicos, também são medidas para corrigir as desigualdades históricas que têm impedido que os afro-brasileiros tenham acesso a tais espaços.
Estamos conscientes de que, para superar o legado do colonialismo e da escravidão, os desafios enfrentados pelo Brasil são de enorme magnitude. As injustiças históricas continuam afetando profundamente a vida de milhões de afro-brasileiros e estão presentes em todos os níveis da sociedade brasileira. Os negros do país ainda sofrem racismo estrutural, institucional e interpessoal.
Apesar do compromisso do governo, do quadro jurídico abrangente e da ampla gama de políticas públicas, o avanço no desmantelamento da discriminação racial ainda é lento. As leis e políticas ainda não são suficientemente eficazes para promover uma mudança substantiva na vida dos afro-brasileiros. Ademais, constatamos também que alguns setores da sociedade acreditam que o Brasil é uma democracia racial.
Os afro-brasileiros constituem mais da metade da população brasileira, no entanto, são sub-representados e invisíveis na maioria das estruturas de poder, nos meios de comunicação e no setor privado. Esta situação tem origem na discriminação estrutural, que se baseia em mecanismos históricos de exclusão e estereótipos negativos, reforçados pela pobreza, marginalização política, econômica, social e cultural.
Embora o Brasil tenha avançado na redução da pobreza, da pobreza extrema e das taxas de desigualdade, processo do qual os afro-brasileiros se beneficiaram, constatamos que ainda há um grande contraste entre a precariedade da situação dos negros brasileiros e o elevado crescimento econômico do país. Os afro-brasileiros não serão integralmente considerados como cidadãos plenos sem uma justa distribuição do poder econômico, político e cultural.
Com frequência, o racismo institucional assume a forma de uma repartição desigual dos gastos públicos. Manifesta-se também nos baixos indicadores socioeconômicos e no baixo nível de participação na administração pública e de representação na vida política. Afro-brasileiros se beneficiam proporcionalmente menos de instalações educacionais e de saúde, da administração da justiça, do investimento público e privado, infraestrutura básica e outros serviços. Expressamos preocupação com a situação das pessoas sem-teto e sem terra; preocupa-nos igualmente a falta de moradia e a insuficiência de políticas de habitação que afetam negativamente vida dos negros brasileiros, particularmente nas favelas e quilombos.
A discriminação múltipla afeta tanto as mulheres e meninas negras quanto os indivíduos LGBT, manifestando-se em desigualdades no acesso à saúde e ao emprego nos setores público e privado. A sociedade civil denunciou a feminização da pobreza, a elevada proporção de mulheres afro-brasileiras que trabalham em condições precárias, principalmente no serviço doméstico, e a dificuldade de acesso a saúde que acarreta taxas elevadas de mortalidade materna.
Deve-se observar que o racismo institucional continua presente no sistema de justiça e segurança em todos os níveis. É ele que impede a igualdade de acesso à justiça para afro-brasileiros quando vítimas de violações. Além disso, manifesta-se na prática de perfil racial, nos números desproporcionais de prisões e representação excessiva de negros na população carcerária.
Observamos com preocupação o alto nível de violência e criminalidade que afeta a sociedade brasileira. Fomos informados de graves violações de direitos humanos perpetradas pelas forças de segurança, em particular pelas Polícias Civil e Militar, contra os jovens e adolescentes negros. Muitas dessas violações ficam impunes. Funcionários governamentais denunciaram a violência devastadora e os assassinatos. No entanto, a partir de reuniões com a sociedade civil, soubemos que isto continua sendo uma prática generalizada. Devemos ressaltar que um dos pilares centrais dos direitos humanos é o respeito ao direito à vida e à integridade física. Lembremos que as normas imperativas dos direitos humanos proíbem os Estados de cometerem execuções sumárias, extrajudiciais e arbitrárias.
Queremos parabenizar o trabalho do governo em reconhecer os títulos de propriedade dos quilombolas e consideramos este um passo importante no sentido de garantir seus direitos. No entanto, continuamos preocupados com os graves atrasos que a maioria das comunidades enfrenta na obtenção de títulos fundiários.
Durante as visitas aos quilombos e nas reuniões com os governos, fomos informados sobre a grave falta de acesso às terras tradicionais, sobre a pobreza extrema e os males sociais relacionados, os quais acarretam atos de agressão e perseguição contra quilombolas defensores de direitos humanos. Comunidades quilombolas também denunciaram o racismo ambiental e o impacto negativo da indústria extrativista e do agronegócio.
Quanto ao racismo interpessoal, este tem sido amplamente documentado. Ele se apresenta sob a forma de atitudes de rejeição e exclusão contra os afro-brasileiros. Estamos particularmente preocupados com o racismo sofrido pelas crianças nas escolas e o respectivo impacto psicológico. Além disso, o racismo contra os afro-brasileiros é reforçado por estereótipos e preconceitos amplamente difundidos pelos meios de comunicação de massa.
Estamos também preocupados com o racismo, a perseguição e as violações dos direitos culturais e à liberdade de religião sofridas por comunidades religiosas de origem africana, dentre outros, o Candomblé e a Umbanda.
Como mencionado anteriormente, parabenizamos os avanços legislativos e as políticas públicas implementadas pelo Brasil para combater as desigualdades raciais enfrentadas pela comunidade negra. Esperamos que o Brasil continue no caminho iniciado durante o governo Lula e seguido pelo atual governo da presidenta Dilma.
A luta contra o racismo deve engajar toda a sociedade brasileira. A sensibilização, o diálogo intercultural e a educação são essenciais para desconstruir a ideia de hierarquia racial. Ações concretas e implementações efetivas de leis e políticas públicas para a igualdade racial são essenciais para fazer uma mudança real e impactar positivamente os afro-brasileiros.
O fim da desigualdade racial, do racismo, da discriminação, da xenofobia e das intolerâncias correlatas beneficiará não só os negros brasileiros, mas também o conjunto da população do Brasil. Reforçará a democracia, a primazia do direito e o desenvolvimento social e econômico. Esperamos, ainda, que os progressos alcançados no combate ao racismo no Brasil tenham um impacto profundo e duradouro em todos os países da América Latina que compartilham o legado de racismo.
Saudamos também a abertura do governo e sua atitude transparente e objetiva frente à situação das comunidades negras e os desafios a serem enfrentados. Gostaríamos de agradecer o Itamaraty, a SEPPIR, o governo – nos níveis federal, estadual e municipal -, o Congresso Brasileiro, o Supremo Tribunal Federal, a sociedade civil, os vários afro-brasileiros e, por fim, o Sistema das Nações Unidas no Brasil pelo seu apoio nesta missão.
Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 2013
Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Afrodescendentes
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O Grupo de Trabalho é composto por cinco especialistas independentes servindo em suas capacidades pessoais: Verene Shepherd (Jamaica), relatora-presidenta; Monorama Biswas (Bangladesh); Mireille Fanon-Mendes-France (França); Mirjana Najcevska (Antiga República Iugoslava da Macedônia) e Maya Sahli (Argélia).
O Grupo de Trabalho de Especialistas sobre Afrodescendentes foi estabelecido em 2002 pela então Comissão de Direitos Humanos, após a Conferência Mundial contra o Racismo, realizada em Durban, em 2001.
Os especialistas das Nações Unidas, entre outras atividades, realizam visitas a países sob o convite dos governos para facilitar o entendimento da situação dos afrodescendentes em várias regiões do mundo, bem como para promover um completo e efetivo acesso a saúde, educação e justiça por parte dos afrodescendentes. Para saber mais, clique aqui.
Veja o relatório de 2005 do Relator Especial contra o Racismo das Nações Unidas para o Brasil clicando aqui.
Para mais informações e pedidos da mídia, favor contatar:
• No Rio de Janeiro: Valéria Schilling ou Gustavo Barreto (+55-21-2253-2211 / valeria.schilling@unic.org)
• Em Genebra: Sandra Aragon-Parriaux (+41-22-928-9393 / saragon@ohchr.org) ou escreva para africandescent@ohchr.org
• Para pedidos da mídia relacionados com outros especialistas independentes das Nações Unidas: Xavier Celaya, Direitos Humanos da ONU – Unidade de Imprensa (+ 41 22 917 9383 / xcelaya@ohchr.org)

Políticas de igualdade racial fracassaram no Brasil, afirma ONU

Em Genebra 14/03/2016
Apesar de 20 anos de iniciativas para reduzir a disparidade vivida pelos negros na sociedade brasileira, a Organização das Nações Unidas (ONU) afirma que o país "fracassou" em mudar a realidade de discriminação e da pobreza que afeta essa parcela da população. Num raio-X da situação da população afro-brasileira que será apresentado nesta segunda-feira (14), no Conselho de Direitos Humanos, a ONU aponta que houve "um fracasso em lidar com a discriminação enraizada, exclusão e pobreza enfrentadas por essas comunidades" e denuncia a "criminalização" da população negra no Brasil.
O documento obtido pela reportagem foi preparado pela relatora sobre Direito de Minorias da ONU, Rita Izak, que participou de uma missão no Brasil em setembro do ano passado. Suas conclusões indicam que o mito da democracia racial continua sendo um obstáculo para se reconhecer o problema do racismo no Brasil. "Esse mito contribuiu para o falso argumento de que a marginalização dos afro-brasileiros se dá por conta de classe social e da riqueza, e não por fatores raciais e discriminação institucional", constatou a relatora.
Para ela, "lamentavelmente, a pobreza no Brasil continua tendo uma cor". Das 16,2 milhões de pessoas vivendo em extrema pobreza no país, 70,8% deles são afro-brasileiros. Segundo o levantamento da ONU, os salários médios dos negros no Brasil são 2,4 vezes mais baixos que o dos brancos e 80% dos analfabetos brasileiros são negros.
Para ela, os afro-brasileiros continuam no ponto mais baixo da escala socioeconômica do Brasil. "64% deles não completam a educação básica", alerta. Em sua avaliação, mesmo com projetos como Bolsa Família, a "desigualdade continuou" para os afro-brasileiros.
O impacto dessa situação social é que muitos "vivem às margens da sociedade". "Para a juventude, o acesso limitado à educação de qualidade, a falta de espaços comunitários, altas taxas de abandono da escola e crime significam que tem poucas ambições ou perspectivas de vida."
As cotas em diversas instituições, ainda que tenham sido elogiadas pela ONU, não foram suficientes ainda para ter um impacto maior. Rita lamenta o fato de o sistema não existir no Legislativo, no Poder Judiciário e também de não ser aplicável para postos de confiança.
No Judiciário, apenas 15,7% dos juízes são negros e não existe nenhum atualmente no Supremo Tribunal Federal. " Na Bahia, onde 76,3% da população se identifica como afro-brasileira, apenas 9 dos 470 procuradores do Estado são afro-brasileiros", indicou. No Congresso, apenas 8,5% dos deputados são negros.
Violência
Um dos aspectos tratados pela ONU é o impacto da violência nessa parcela da população. Rita se disse "chocada com os níveis de violência no Brasil". "Lamentavelmente, a violência tem uma clara dimensão racial", disse. Dos 56 mil homicídios no Brasil por ano, 30 mil envolveram pessoas de 15 a 29 anos. Desses, 77% eram garotos negros.
Segundo o levantamento da ONU, os números de afro-brasileiros que morreram como resultados de operações policiais em São Paulo são três vezes superiores do que é registrado com a população branca. No Rio de Janeiro, 80% das vítimas de homicídios resultante de intervenções policiais são negros. "Movimentos sociais já chamam a situação de genocídio da juventude negra", apontou a relatora.
A impunidade também contribui para esse clima de violência. De 220 casos de homicídios cometidos pela polícia e investigados em 2011, apenas um deles foi condenado. "Dada a natureza totalmente generalizada da impunidade, testemunhas raramente vão se pronunciar, temendo retaliação", indicou.
Criminalização
O que ainda chama a atenção da ONU é o que a relatora chama de "criminalização dos afro-brasileiros". "Estima-se que 75% da população carcerária no Brasil seja de afro-brasileiros. Estudos ainda mostram que, se condenados, afro-brasileiros são desproporcionalmente sujeitos à prisão."
Os negros têm ainda mais chances de serem parados pela polícia e aqueles que são pegos com drogas, maiores chances de serem denunciados por tráfico. "Desde 2005, quando as novas leis de combate às drogas entraram em vigor, o número de pessoas presas por questões relacionadas às drogas aumentou em 344%", apontou Rita.
Na avaliação da relatora, a proposta de redução da idade penal de 18 para 16 anos ainda "perpetuaria a criminalização da comunidade afro-brasileira". As mulheres negras brasileiras também têm sua situação minada pela cor, o que "exacerba sua marginalização". Em 2013, 66% a mais de mulheres afro-brasileiras foram mortas, na comparação às mulheres brancas.