top of page

Réquiem para um sambista-mor

Ele foi tempo de grandes carnavais, das batucadas brabas, do samba-pesado, do samba-de-negro, quando a sociedade torcia o nariz para as escolas de samba, como se fossem escolas de malandragem. Foi nesta época da chamada resistência do samba,  que começou a despontar como baliza do Rancho Horizonte, integrado por crioulos da pesada e na base da batucada. Depois foi para a Escola de Samba Brasil, onde se glorificou  ao conquistar o título da melhor baliza do Estado e de campeão do IV Centenário de São Paulo (1954), na Capital, quando o então governador Lucas Nogueira Garcês colocou uma medalha no seu peito.

 

Além do desempenho carnavalesco em blocos, ranchos e escolas de samba, era um assíduo freqüentador das rodas de samba-pesado armadas no alto do Monte Serrat, por ocasião da festa da Padroeira e mostrava o seu valor de batuqueiro nato, com sua ginga inconfundível, maneios de corpo e pernadas certeiras diante de outros renomados bambas, tirando assim sua patente de batuqueiro. Também foi participar das rodas de pernadas, na Praça da Sé, em São Paulo, onde passou a ser respeitado devido as suas proezas. Gostava, igualmente, de mostrar suas qualidades de bailarinos nas gafieiras da cidade: Vila Paulista, Som de Cristal, Brasipés (X-9), Elite e outras, participando de brigas memoráveis, que aconteceram no final dos bailes, quando os crioulos disputavam as cabrochas faceiras.

 

Naqueles tempos ainda imperava o folclore e para ser dirigente de uma escola de samba, além de bamba, tinha que ser valente, encarar na base do sopapo e da pernada. Foi  assim que, em meados dos anos 50, já considerado um mestre na arte de sambar, depois de ter passado pela Escola de Samba Príncipes Negros, criou o seu próprio império, ou melhor, a Escola Império do Samba, com a qual conquistou muitas glórias para nossa cidade, inclusive, em São Paulo, chegando a abiscoitar vários títulos estaduais, consagrando definitivamente a nossa cidade.

 

Na Império ele fazia de tudo. Ensaiava as crianças, as balizas, as pastoras, os passistas, as baianas, as cabrochas, e a bateria, sempre com o inseparável apito e o gingado incomparável. Era amável e rude ao mesmo tempo, pois com a mesma mão que afagava, batia duro. Não admitia vacilo e todos obedeciam ao mestre. Pudera! Pelo seu Império era capaz de tudo, até abrir caminho no braço e na perna, se fosse preciso. Quando a sua escola chegava em São Paulo para disputar com as valorosas co-irmãs paulistanas, costumavam perguntar: “ Que escola é  essa?” Ele respondia de imediato estufando o peito: “Império do Samba”, arrematando em seguida” ...de Santos!”. Fazia questão de citar o nome da cidade pela qual brigava mesmo.

 

Depois de ter participado de grandes campanhas carnavalescas em Santos e em São Paulo, foi para a Capital do Samba, onde tivemos orgulho de apresentá-lo nos redutos famosos: Estação Primeira, Portela, Salgueiro, império Serrano e outros mais. Um dia, o seu Império deixou de sair às ruas, mesmo assim,  lutou para reerguê-lo, mas foi inútil. Magoado ferido em seus brios, foi dar o seu recado no outro império, no Rio de Janeiro, onde já havia ganhado fama e popularidade. E no  Império Serrano, que amou tanto quanto o seu, chegou a participar da harmonia em vários carnavais.

 

Ainda no Carnaval de 1979, uma merecida homenagem: foi aclamado Cidadão Samba Oficial de Santos, por antiguidade e merecimento. E quando muito pensavam que já estava acabado, eis que demonstra mais uma vez o seu valor ao ser consagrado Rei Momo Paulistano (1991), revelando-se um verdadeiro monarca negro. No ano seguinte, foi igualmente aclamado Rei Momo de Santos. Depois que entregou a cora prosseguiu como sambista-mor, com os seus momentos de explosão, protestando em altos brados. É que tudo havia mudado, não mais existiam aqueles carnavais monumentais do passado.

 

Alto e corpulento, o velho mestre, já veio abalado, ainda era intrépido, genioso e irrequieto, não gostava de levar desaforo para casa. Não faz muito tempo topou com um sujeito folgado, que chegou ameaçá-lo. Tentou se controlar, mas não deu. Largou sua pernada e o desafiante ficou postado no chão. Então ajeitou-se o chapéu e saiu com o andar bamboleante, gingando para um lado e para outro, naquela malevolência da antiga dizendo: “ Esses caras de hoje não respeitam mais os mais velhos” . Sentia que os tempos haviam mudado e que não havia mais lugar para os bambas do passado. Afinal pertencia a uma estirpe em extinção.

 

Sambista de fato e de direito, dotado de um espírito nobre e forte, Dráuzio da Cruz, o Cabo Brilhantina, lutou pelo engrandecimento do samba santista, motivo pelo qual deixou uma lacuna difícil de preencher. Sua inesperada partida colheu-nos de surpresa. É, pois, com incontida emoção que homenageamos ao inesquecível sambista, cuja amizade e convivência no samba tivemos privilégio de desfrutar no decorrer de muitas décadas.

 

O certo é que sua venerada figura passa a integrar a galeria dos imortais do mundo do samba santista e o seu nome ficará gravado com letras  de ouro nos anais do carnaval da cidade, na qual reinou como um imperador: o Imperador do Samba. E como era nobre teve até réquiem no seu funeral. Foi carregado pelos sambistas, com as bandeiras drapejando, chegando na sua última morada ao som dos tambores e de uma cantoria uníssona: “ Eu sou Império do Samba até morrer...”

J. Muniz Jr.

 

Publicado no jornal A Tribuna de 23 de setembro de 1994

 

Webmaster: Luiz Otávio de Brito

Início do Site 21 de março de 2000, Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial

Direitos da Produção da Cultura Negra Região de Metrópole Santista, protegidos pela Lei Federal Nº 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. Direitos Autorais no Brasil. Publicação realizada pela Câmara Municipal de Santos. 

    • Facebook Social Icon
    bottom of page